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POSTO DE ESCUTA Body Betrays Itself

No ano transacto, quando Abandon chegou aos escaparates, já o epíteto Pharmakon havia suscitado a curiosidade de muitos melómanos fora do noise, esse nicho artístico pouco dado a fenómenos com expressão mediática maior do que as fronteiras do género e capazes de chegar a outros públicos. O sobressalto gerado pela música de Margaret Chardiet nem era propriamente resultado de uma fórmula virgem nesse domínio, mas sobretudo de perceber-se quão áspera, crua e gutural conseguia soar uma jovem de apenas vinte e dois anos (à data) e de como, na solidão catártica das suas actuações conseguia veicular, fosse na estridência e rudeza vocais, fosse na toxicidade instrumental, uma energia estranhamente hipnótica e sedutora. A busca da beleza na repulsa, a exploração das tensões e conflitos nesse absurdo paradoxal do indivíduo e, em certo sentido, a exposição visceral da sua própria natureza eram, então, as premissas maiores do assalto sensorial de Chardiet. Daí à proximidade com o radicalismo sonoro a distância era curta e, sem se deter em maniqueísmos, Chardiet colocou-nos perante um dilema de compromisso, talvez até a derradeira demanda existencialista: há na espécie humana um ímpeto de confronto que não se aquieta. Somos como somos porque mora em nós a pulsante chispa da conquista, mascarada nas múltiplas formas da ambição. Em Pharmakon, Chardiet rende-se ao lado mais assombrado e tortuoso da mundanidade: a ambição é um fantasma difícil de exorcizar.

De
Abandon para cá, Chardiet viu o abismo. Operada a um tumor quase fatal, teve que conviver com a fragilidade do seu próprio corpo, na lenta convalescença que se seguiu. Bestial Burden é tingido pelo tom testemunhal desse processo de regeneração contra a traição celular e de evidência da vulnerabilidade. Também por isso, e em certo sentido, a música do disco é tão "física" quanto seria expectável, incluindo vómitos, tosse e arfadas, um roteiro cru ao tormento físico vivido por Chardiet. A mente impotente desconecta-se do corpo falido, rebela-se contra ele, quer desprender-se da frágil condição da mortalidade. No resto, a marcha das electrónicas ponderosas, as interferências abrasivas e a métrica quase industrial suportam uma voz ácida, cortante e enfeitiçada. Mas sempre, sempre humana. Porque o medo da morte é uma merda.   

Novembro 27, 2014

Pharmakon Bestial Burden

Sacred Bones, 2014

 

 

Crítica Filho da Mãe - Cabeça

7,9

 

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